Um novo passado

No mundo de hoje, vivemos alguns paradoxos curiosos. No plano individual, vemos a dificuldade cada vez maior de lembrar e prestar atenção, apesar de, ao mesmo tempo, estarmos registrando tudo o tempo inteiro, quase como se a gente estivesse dentro de um BBB. Por outro lado, no plano coletivo, nossa história comum é cada vez mais questionada. Mas, ao mesmo tempo, desenvolvemos cada vez ferramentas para aprimorar e aprofundar a nossa compreensão dos registros e vestígios de nosso passado.

Por exemplo, as antigas imagens do passado, fixadas em fotografias borradas ou filmagens em preto e branco, do tempo do cinema mudo, agora podem ser revistas e assistidas com cor e cada vez mais nitidez. Já são inúmeros os programas que podem restaurar essas imagens com um clique. Na internet, podemos encontrar vários exemplos dessa mágica, basta buscar “colorization old image and video movie” no Google

Não é exagero dizer que a maneira como nos relacionamos com a memória individual e compreendemos nossa história coletiva está passando por transformações significativas. Se antes era comum encarar a memória e a história como se fossem uma fotografia estática e inalterável do passado, hoje o passado parece mais vivo e as possibilidades de interpretá-lo mais diversas.. 

A história é uma forma de conhecimento e de investigação da nossa vida comum. Enquanto a memória está diretamente relacionada ao nosso autoconhecimento enquanto indivíduos. O pesquisador Charan Ranganath acabou de lançar um livro sobre isso,  “Why We Remember” (Por Que Lembramos). No livro, Ranganath passeia pela natureza complexa da memória humana e tenta entender como ela molda nossa identidade. Ele questiona a crença comum de que a memória é como um registro fotográfico preciso do passado, argumentando que as memórias são, na verdade, reconstruções ativas que sofrem influência de nossas percepções e emoções atuais no momento em que estamos recordando. Segundo ele, isso faz com que as memórias sejam maleáveis, sujeitas a distorções e interpretações. Isso revela como nossa compreensão de nós mesmos e do mundo ao nosso redor é construída sobre uma base menos estável do que imaginamos.

Isso abre uma janela para muita gente que encara o passado como uma prisão. Essa forma de lidar com o passado pode ser libertadora, como cantam os Tribalistas: “Fora da memória tem / Uma recompensa / Um presente pra você (…) Uma fantasia / Para você recordar todo dia”. Algumas coisas merecem ser lembradas, outras, talvez não. No livro Ulisses, de James Joyce, o personagem Stephen Dedalus, um angustiado professor de História chega a dizer: “A história é um pesadelo do qual eu quero acordar”. Na voz de Dedalus, Joyce expressa sua própria angústia, com o peso da tradição e uma concepção de história que pode engessar e aprisionar nosso olhar sobre o mundo. Isso era um pesadelo para artistas inovadores como Joyce, já que ele queria criar (e criou) uma nova forma de expressão. 

Hoje, as tecnologias digitais estão ajudando a ampliar os meios de recuperar  registros do nosso passado comum, mas também estão ajudando a reinventar a forma de contar essa história. A possibilidade de recriar digitalmente ambientes e fatos marcantes da história acaba sendo uma aliada importante para ampliar o interesse pelo estudo da nossa história comum. Grandes livros e filmes sobre momentos históricos já fazem isso há algum tempo, mas a possibilidade de interagir com personagens importantes e explorar de forma imersiva os cenários onde aconteceram os fatos é algo fascinante.

Esse é o caso da franquia de games Assassin’s Creed Origins, da Ubisoft, que permite explorar alguns cenários históricos, como a Grécia Antiga e o Egito do tempo dos faraós. No game é possível usar o Modo Discovery Tour, com isso não é necessário jogar o jogo, ou seja, participar dos desafios ou das lutas. Nessa modalidade, é possível explorar os cenários e o cotidiano recriado daquele período histórico, uma forma virtual de voltar no tempo. Para quem não tem o game, vale buscar no youtube os vídeos feitos pelos exploradores, como no canal DayDream Gaming, que tem passeios exploratórios com mais de 6h de duração. Algumas pessoas até consideram esses vídeos relaxantes…

No campo da pesquisa histórica, o número crescente de descobertas e dados arqueológicos, etnográficos e até biológicos, incluindo análises do DNA de fósseis, está transformando profundamente as narrativas estabelecidas da história contemporânea. Essas novas evidências estão não apenas enriquecendo nosso entendimento dos eventos passados, mas também estão desafiando e redefinindo concepções previamente aceitas sobre culturas, sociedades e suas interações ao longo do tempo. É uma enxurrada de informações novas sobre o passado que ainda precisamos de tempo para absorver. 

No livro “O Despertar de Tudo”, lançado em 2022, um antropólogo, David Graeber e um arqueólogo, David Wengrow, apresentam uma curiosa revisão de algumas de algumas concepções clássicas de nossa história comum. Como a narrativa que  explicava que sociedades complexas, ou mais desenvolvidas, só surgiram após a adoção da agricultura. Os dados reunidos no livro apontam que os caçadores coletores podiam ter uma estrutura de organização mais complexa do que se imaginava. Mas a releitura mais interessante do livro é o resgate das conversas do pensador indígena Kondiaronk com o barão de Lahontan, publicadas em 1703. Segundo os autores, observações de Kondiaronk sobre a forma desigual de convivência nas sociedades europeias podem ter inspirado algumas das ideias do Iluminismo. Boa parte da argumentação dos autores também se baseia em novos dados arqueológicos. Mesmo que suas implicações possam ser discutidas, o livro tem mérito de mostrar o castelo de cartas que sustenta muito das nossas narrativas históricas. 

O passado é surpreendente. Quem diria que uma biblioteca soterrada pelas cinzas do vulcão Vesúvio um dia poderia ser recuperada. Esse é o ambicioso objetivo do  Desafio Vesúvio (Vesuvius Challenge). Uma competição internacional lançada em 2023 para ver quem consegue decifrar os pergaminhos de Herculano, papiros  carbonizados e preservados desde a erupção do Monte Vesúvio, em 79 d.C. Nessa biblioteca existem mais de 1800 pergaminhos com obras da antiguidade. Os pesquisadores que se engajaram no desafio usam tecnologias avançadas de escaneamento, com software de raio-X 3D e ferramentas de inteligência artificial para recompor os textos encontrados. Alguns desses papiros podem ajudar a reescrever capítulos importantes da nossa história comum. Não deixa de ser irônico que o primeiro trecho recuperado, depois de tanto trabalho, seja de um pergaminho do filósofo Filodemo, falando dos prazeres da música e da comida e seus efeitos nos sentidos. 

A história comum pode ser viva e plural, assim como nossas lembranças. Diziam que os povos tradicionais não tinham história, pois não faziam registros escritos. Pois se acreditava que só aquilo que fosse documentado podia ser considerado uma evidência válida do passado comum. No entanto, a memória coletiva desses povos sobrevive. Variação e  criatividade são provas de que são memórias vivas, validadas sempre que são revividas. Como disse no começo, vivemos em uma época paradoxal. A quantidade de registros e rastros digitais que estamos deixando do nosso cotidiano vai obrigar os historiadores do futuro a escolher o que merece ser lembrado. Portanto, cabe a nós escolher o que merece ser esquecido.

Andre Stangl
É professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP. 

Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 24/02/2024 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2024.

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