A gaiola das celebridades digitais

Acabou de estrear na Netflix uma série contando a impressionante trajetória de Alexandre, o Grande, um dos maiores conquistadores de seguidores da história. Na antiguidade, o culto a Alexandre acaba transformando-o em um ser quase divino, filho de Zeus e Amon. No momento em que Alexandre conquista o Egito e é reconhecido como faraó, ele passa a ser visto como um tipo de deus. A população começa a venerá-lo, acendendo velas e lhe rendendo homenagens. 

No mundo contemporâneo, esse tipo de admiração por outro ser humano, com tal intensidade, é mais comum no caso das grandes celebridades, como a cantora Taylor Swift, por exemplo. A admiração por essas celebridades é tão grande que pode até lembrar a forma como alguns heróis e deuses eram venerados na antiguidade. Mas não ao ponto de motivar guerras, como era o caso. 

A forma como surgem celebridades no mundo de hoje mudou muito. Antes, a indústria cultural selecionava e promovia suas estrelas no cinema, no rádio ou na televisão. Hoje em dia, basta ter um celular e produzir algum conteúdo que possa interessar a algum público específico. Com um pouco de sorte e persistência, alguns acabam conseguindo conquistar uma quantidade de público impensável no modelo antigo. Só que, no caso das celebridades digitais, essa fama acabou gerando um modelo de negócios que permite a sustentabilidade desse tipo de produção, através da famosa pub, ou seja, a divulgação de produtos e serviços.

Outro dia, durante o programa Big Brother, o brother Davi chorou. O motivo foi ter ganhado uma bolsa de estudos, sendo que o seu sonho é estudar Medicina. O que Davi talvez não tenha percebido é que esse sonho pode demorar um pouco e ele, na verdade, agora já tem uma nova “profissão”. Com quase 4 milhões de seguidores, ele já é uma celebridade e, se quiser, pode até se tornar um influencer. Como o Gil do Vigor e diversos outros brothers.

No caso deles, o fato de ter participado de um programa como BBB é determinante para conseguir se tornar um influencer rentável. A maioria dos influencers cresce a partir do interesse que seus conteúdos podem gerar. Podem ser postagens de humor, ou sobre moda, estilo de vida, saúde, esporte, games, etc. Nos últimos anos, tem crescido de forma astronômica a quantidade de criadores de conteúdo digital. Estima-se algo na ordem de 10 milhões, segundo uma reportagem aqui no Correio, isso já ultrapassa em 19 vezes a quantidade de médicos no país.

Eu também gosto de seguir alguns influencers nas redes digitais. Um deles vai fazer 103 anos, mas, por enquanto, ele só tem 230 mil seguidores no X. Estou falando de Edgar Morin, um dos principais pensadores da cultura contemporânea. Morin começou a estudar os fenômenos da cultura de massa nos anos 1950. O seu livro  “Cultura de Massas no Século XX – O Espírito do Tempo – Neurose e Necrose”, lançado em 1962, é marco da Sociologia que durante muito tempo foi subestimado. 

Em 2001, o pesquisador Eric Macé propôs uma releitura interessante dessa obra de Morin. No artigo “Éléments d’une sociologie contemporaine de la culture de masse. À partir d’une relecture de L’Esprit du temps d’Edgar Morin”, ele [realça a importância do conceito de cultura de massa, proposto por Edgar Morin, como uma ferramenta ainda relevante para compreender as dinâmicas atuais da indústria cultural. Contrariando a ideia de que o conceito está ultrapassado, Macé enfatiza que Morin se concentrou primordialmente nas estratégias de produção e nos significados simbólicos inerentes à cultura de massa, mais do que em seus aspectos de uso e recepção. Segundo Morin, a ambivalência e o sincretismo se destacam como aspectos fundamentais da cultura de massa, que não apenas refletem mas também moldam as tensões sociais do tempo presente, através da criação de novos mitos e ideais de ego.] via gpt4

Para Morin, a cultura de massa também pode gerar obras primas e subverter as expectativas alienantes. Nesse contexto, a forma como as celebridades midiáticas são cultuadas difere do culto aos deuses, pois não se busca proteção, curas ou algum tipo de conforto. Segundo ele, as celebridades podem inspirar uma “imaginação subversiva da felicidade”, ou seja, [a maneira pela qual a cultura de massa propõe e dissemina concepções de felicidade que desafiam e potencialmente subvertem as normas e expectativas sociais vigentes. Essa noção de felicidade não se alinha necessariamente com as ideias tradicionais de sucesso, estabilidade ou conformidade social, mas, ao contrário, enfatiza a realização pessoal, a liberdade individual e a quebra de convenções.] via gpt4

Antigamente, os deuses e os heróis nos inspiravam, indicando caminhos e nos ajudando a entender nossas escolhas. Essa cultura foi se transformando e, ao mesmo tempo, foram se consolidando novas noções de identidade, relacionadas com a idade, com os gêneros e as etnias. A cultura jovem é até recente na história da humanidade. Antes era comum a criança virar adulto, sem nunca ter sido jovem. Até as brincadeiras das crianças tendiam a imitar a vida adulta. A identidade dos jovens ou adolescentes vai se consolidando com as mudanças na sociedade moderna. 

Hoje, boa parte dos jovens se reconhece e se inspira nos influenciadores digitais. Já que todos podem tentar se tornar celebridades, fica mais fácil se reconhecer e se inspirar em alguém que é como você. Por outro lado, transformar isso em profissão, ou seja, usar uma parte do seu cotidiano como se fosse uma mercadoria tem seus desafios e riscos. 

A forma como consumimos publicidade mudou muito. No streaming, quase não vemos comerciais, e a publicidade na mídia impressa não conseguiu encontrar uma forma eficaz de migrar para o digital. Com isso, os influenciadores digitais se tornaram uma alternativa interessante para a divulgação de muitas marcas. Basta encontrar algum tipo de identificação entre o produto e o perfil do influenciador. 

Ainda que existam muitos aspectos positivos desse novo modelo de negócio, pode ser interessante retomar algumas lições das análises de Morin e buscar uma forma de interpretar o sentido dessa nova forma de culto à celebridade. Assim, talvez a gente possa evitar os exageros dessa nova cultura. Basta observar que muitos influenciadores acabam não sabendo lidar com os desafios psicológicos de sua atividade.  

Será que viver uma parte do seu cotidiano atrelado à venda de uma marca acaba sendo uma gaiola difícil de sair? Será que Davi, quando sair do BBB, vai ser procurado por empresas de produtos de limpeza para casa? E se ele se tornar um influencer desses produtos, vai esquecer do sonho de ser médico? 

Segundo Morin, precisamos olhar os fenômenos da cultura de massa sob diversos ângulos, pois o papel do culto às celebridades na cultura contemporânea está passando por profundas transformações. Reler a obra de Morin pode ser uma forma de reencontrar alguma esperança nessa confusão.

Andre Stangl
É professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP. 

Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 10/02/2024 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2024.

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