Porque ainda usamos e-mail?

Sejam bem-vind@s ao nosso Museu. A proposta dessa coluna quinzenal é refletir sobre as tecnologias e as formas como elas afetam as nossas vidas. Como dizia o poeta Cazuza, o tempo não para. Mas já notaram que toda novidade tecnológica é uma forma nova de fazer algo que já existia antes? Os carros são carroças motorizadas, o celular é um novo telefone, e por aí vai. Por isso, nada melhor que um Museu de Novidades para conhecer um pouco mais da história do nosso futuro.

Para começar, vamos falar do nosso querido e esquecido e-mail. Era para ser apenas uma carta eletrônica, mas parece que sua utilidade está mudando. Ele foi inventado há mais de 50 anos. Foram vários desenvolvimentos simultâneos, feitos por pesquisadores e programadores em lugares diversos, por isso é difícil definir uma data exata de sua criação. Mas é consenso que o primeiro uso do @ em uma mensagem eletrônica foi em 1971, por Ray Tomlinson.  

Mas só nos anos 1990 o e-mail se tornou popular. Antes era restrito e mais usado na academia. No começo, os e-mails tinham que ser baixados no computador através de programas como Outlook. Receber um anexo era uma coisa arriscada, pois poderia ter um vírus capaz de destruir todos os arquivos do seu HD. O espaço no HD também era mais limitado e, às vezes, era necessário fazer uma faxina na Caixa de entrada para liberar espaço. 

Naquela época, quem precisasse formatar o computador tinha que fazer backup de todas as mensagens de um computador para outro. Um processo trabalhoso, chato e arriscado. Depois surgiram serviços como Yahoo, Hotmail e Gmail, que permitiam acessar de forma remota todas as suas mensagens, usando qualquer computador. Foi a época dos cibercafés e das lan houses.    

É estranho pensar em uma tecnologia como algo que pode envelhecer, pois o usual é associar tecnologia e inovação. Mas as tecnologias ficam obsoletas e muitas vezes são substituídas. Pensando nisso,  surgiu uma pergunta: por que ainda usamos e-mail?

Dependendo da sua atividade profissional, o e-mail ainda pode ser muito útil. Principalmente quando precisamos anexar documentos, registrar algum tipo de negociação ou acessar sistemas restritos de uma organização. Alguns governos têm até seu próprio serviço de e-mail. Mas basta sair do escritório (ou nem isso, se você está em home office) para ver que a utilidade do e-mail está mudando. Hoje em dia, ele praticamente não é mais usado para conversar. Foi substituído por aplicativos de mensagem como WhatsApp ou o inbox de plataformas como Instagram e Facebook. Isso, claro, no caso de pessoas com mais de 30 anos. 

Os mais novos, em geral, não têm ideia de um motivo para ter um e-mail. Para eles, serve somente para conseguir fazer o registro que permite acessar outras plataformas. Ou seja, o e-mail virou apenas uma forma de validar o cadastro em diversos serviços digitais.

E aqui chegamos a um ponto importante. Quanto mais a gente usa o e-mail como forma de validação, maior é a quantidade de spams e propagandas que vamos receber. Porque o  nosso e-mail fornece um dado valioso, nosso contato. Além disso, quando fazemos cadastro em qualquer plataforma, nossas informações são cruzadas, com isso é possível traçar um perfil de consumo ou mesmo uma tendência política. O e-mail vira uma espécie de “placa de carro”. Por meio dele, fica fácil rastrear todas as nossas atividades on-line, basta estar logado na mesma conta. O maior exemplo desse tipo de cruzamento de informações é o Gmail do Google (ou Alphabet). Nossa conta de e-mail fica totalmente interligada com nossas buscas no Google, com vídeos que vemos no Youtube e principalmente em nossos celulares com o sistema Android. 

Como fazemos cadastros em vários lugares com nosso e-mail e nem todo lugar cuida bem dessa informação, passamos a receber um monte de mensagens estranhas, com links suspeitos, falando de uma dívida com o banco, um prêmio, um pedido de ajuda, uma nova doença ou um abaixo-assinado importantíssimo sobre alguma causa humanitária. O famoso spam, que em geral os atuais serviços de e-mail conseguem filtrar e identificar. É praticamente incalculável a quantidade de spams que recebemos no e-mail em um ano, uma coisa totalmente sem sentido. Um robô envia, um robô filtra e um robô deleta. 

Infelizmente, muitas pessoas podem clicar nos links suspeitos dessas mensagens, por desatenção ou ingenuidade. A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) tenta regulamentar a segurança e a privacidade de nossas informações nesses bancos de dados, mas não é suficiente. Por isso é importante criar estratégias de educação digital e midiática que ajude as pessoas mais inexperientes a identificar os riscos de uma mensagem. Hoje em dia, essas mensagens não se limitam mais aos e-mails e estão chegando por outros caminhos, como WhatsApp, pois o nosso número de celular também é um identificador, como o e-mail. O curioso é que já existem identificadores oficiais, como nosso CPF ou RG, mas são “placas” que não permitem o envio de mensagens como o e-mail e o número de celular. 

O surgimento do Pix, que usa o e-mail e o CPF para identificar transações financeiras, parece indicar um caminho pelo qual todas essas informações serão unificadas. Ou seja, quem sabe no futuro nossa identidade vai ser apenas um QR Code? Seja como for, acredito  que é preciso pensar uma outra forma de validação de cadastros, algo que já deve estar no radar dos desenvolvedores. Porém, isso não precisa significar necessariamente o fim do e-mail. 

Mesmo que o e-mail não seja mais necessário para validar cadastros e acessar sistemas, ainda acho que vale a pena usá-lo. Mas para quê? Se o e-mail voltar ao papel principal de simulacro de nossas cartas, talvez possa ter uma importância fundamental na preservação da nossa memória. As nossas conversas nas outras plataformas estão cada vez mais embaralhadas ou mesmo perdidas no meio do caos digital. Isso, com certeza, complica a forma como nos reconhecemos e identificamos. A memória (Mnemósine, na Grécia antiga) é uma deusa poderosa. E sem ela não sabemos quem somos. Eu, por sinal, ainda tenho no meu computador todos os meus e-mails desde 1998… Quando preciso, recupero ali nomes, conversas, ideias. Isso me ajuda a entender o que mudou e o que permaneceu no meu horizonte. 

Antigamente, escritores, pesquisadores, poetas, amigos, namorados trocavam cartas e guardavam suas conversas. Depois, algumas dessas conversas eram até publicadas. Um dos principais textos sobre o humanismo do filósofo Heidegger era uma carta. As culturas de tradição oral sempre tiveram formas rituais de preservar seu legado. Em nosso tempo, soterrados no meio de tantas informações, estamos abrindo mão das nossas memórias. Sempre preocupados com o futuro, esquecemos do percurso que fizemos, de como chegamos até aqui. Precisamos encontrar formas de transformar as tecnologias em aliadas, senão os obsoletos seremos nós mesmos. 

Andre Stangl
É professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP.  astangl@gmail.com – oficinadelinguagensdigitais.com

Coluna Museu de Novidades
Pubilcada no dia 21/10/2013 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com Imagine por Andre Stangl, 2023

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