Por que o uso do celular nas escolas não é uma questão simples?

No Brasil, já existem mais linhas de celular do que pessoas. Aparelhos, então, nem se fala, pois tem aqueles que ficam esquecidos nas gavetas. A quantidade ficou incalculável. Por isso, encontrar equilíbrio no uso cotidiano do celular já é complexo e, no ambiente escolar, fica ainda mais complicado. O problema é que não podemos simplificar a questão sem cometer injustiças ou até mesmo piorar a situação.

A solução ultrapassa os muros da escola. Como pai e educador, sei que não é fácil. Por isso, acho interessante tentar olhar o problema por diversos ângulos. Sem tentar transformar o celular no único vilão dessa história, mas olhando para ele como um dos elementos em uma rede intrincada de fatores. Em geral, quando essa questão é abordada, temos duas linhas argumentativas: uma que privilegia os aspectos físicos e biológicos e outra que vai abordar o contexto social e cultural. Vamos olhar como ficam esses argumentos usando ângulos diferentes.

Quando
O primeiro ângulo, e talvez o mais importante, é a idade das crianças. Quanto a isso, é quase um consenso a visão de que a exposição precoce e prolongada às telas pode ser prejudicial. Diversas pesquisas neurológicas apontam que existem consequências no uso exagerado de telinhas para um cérebro ainda em formação. Por outro lado, é comum ver pais utilizando o celular como uma espécie de “calmante digital” em locais públicos. Esse costume tem relação com as expectativas do que seria um comportamento aceitável, para uma criança, em alguns ambientes. No entanto, são situações que nem sempre são adequadas para crianças menores. O que pode ser cômodo para os pais naquele momento, no futuro, pode cobrar um preço, se isso for uma prática recorrente.

É curioso observar que alguns profissionais que trabalham nas grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício fazem justamente o contrário com seus filhos. Evitam liberar o uso de telinhas desde cedo e até escolhem escolas que evitam as telinhas, como a Waldorf School of the Peninsula. O motivo pode ser, entre outros, o fato deles saberem mais do que ninguém que não existe melhor estratégia do que fidelizar os futuros clientes quando eles ainda são crianças. Será que os fabricantes de refrigerantes e alimentos ultraprocessados também têm o mesmo cuidado com seus filhos? Quem sabe…

Portanto, olhando a questão a partir do ângulo da idade, fica claro que os mais novos, como menos de 10 anos, devem ser preservados da exposição excessiva. Não apenas nas escolas, mas fora delas também.

Como
Agora vamos olhar outro ângulo da questão. Como esse celular é usado? Como os jovens que têm mais de 10 anos estão usando essas telinhas? Existem diversas atividades que o celular oferece. Eles podem fazer anotações, jogar, pesquisar informações, ouvir música, desenhar, fotografar, filmar, ler livros e jornais, ou assistir a séries, etc. Dentro de cada atividade dessas podem ser encontrados conteúdos classificados como sendo adequados para a idade ou não. Essa riqueza de possibilidades torna o celular um recurso interessante no contexto escolar, desde que a classificação etária seja efetiva, o que nem sempre acontece.

Mas, mesmo com essa riqueza de possibilidades, o principal uso do celular costuma ser para acessar as redes sociais. Em um mundo ideal, essas redes só seriam liberadas quando os jovens tivessem maturidade emocional para interagir. Porém, elas são liberadas legalmente a partir de 13 anos e a realidade é que a imensa maioria dos jovens já acessa alguma rede social até antes disso.

Existe uma profusão de reportagens e livros mostrando algumas consequências nefastas dessa nova cultura. Alguns até argumentam que o uso exagerado das telinhas alimentado pela dinâmica viciante das redes sociais estaria diminuindo as capacidades cognitivas dos mais jovens. Esse argumento ajuda a validar a proposta de proibir os aparelhos nas escolas. Além de usos indevidos como a prática de cyberbullying e plágios.

Indo na contramão dessa visão, uma reportagem do The New York Times, intitulada “What Social Media Does to the Teen Brain” (em português: O que as redes sociais fazem ao cérebro adolescente), apresentou pesquisas com visões distintas sobre os impactos das redes sociais na saúde mental de adolescentes. Como foi o caso da pesquisa do Projeto AWeSome, que investiga a relação entre o uso de redes sociais e o bem-estar de adolescentes holandeses, observando como as reações podem mudar ao longo do tempo. Nessa investigação, ainda em curso, eles já identificaram que alguns se sentem felizes e outros tristes com o uso dessas plataformas.

Assim, olhando a questão pelo ângulo do como o celular é usado, vemos que esse é um ponto importante. O celular pode ser usado apenas para consumir informação, mas também permite produzir e compartilhar conteúdos. O que às vezes gera a sensação de reconhecimento e a aceitação dos jovens por outros jovens. Ou, pelo contrário, indica a impressão de um desinteresse dos outros. No entanto, o que os jovens podem não notar é que esse interesse ou desinteresse não tem nada a ver com suas qualidades, mas sim com a forma como os algoritmos impulsionam ou não alguns conteúdos.

Quem
O próximo ângulo para abordar a questão é saber de que jovens estamos falando. Fatores como o contexto familiar, nível socioeconômico, local de moradia, acesso a outras formas de lazer e informação e até mesmo gênero podem adicionar novas camadas na compreensão do papel do celular no cotidiano e na vida escolar.

Se estamos preocupados em qualificar o processo educacional desses jovens, não podemos desconsiderar como é sua vida e seu cotidiano. Quais são seus desafios particulares, as oportunidades diferentes de cada um e, é claro, os privilégios de alguns. Todas essas informações podem trazer pesos diferentes na hora que esse jovem for privado do acesso ao celular. Alguns podem experimentar isso como um tipo de punição. Criando uma percepção ainda menos acolhedora do ambiente escolar.

Além disso, se a justificativa da proibição do celular for o possível impacto no desempenho escolar, também será necessário aprofundar como se dá o processo de aprendizagem. Uma abordagem interessante foi desenvolvida pelo sociólogo Saeed Paivandi, iraniano radicado na França e parceiro do Observatório da Vida Estudantil (UFBA/UFRB). Para ele, existem quatro posturas do estudante em relação à sua vida acadêmica. Os que querem aprender e compreender o que está sendo estudado (reflexivo), aqueles que querem apenas notas suficientes para passar (minimalista), os que focam na vida escolar como forma de ascensão social (estratégico) e, por fim, os que não se adaptaram ao ambiente escolar (deslocado).

Essa tipologia foi desenvolvida a partir de pesquisas com estudantes universitários, mas podemos supor que exista alguma correspondência com estudantes das escolas. O ponto é que essa tipologia pode ajudar a entender porque o impacto do celular no desempenho escolar não é o mesmo para todos.

Onde
O penúltimo ângulo que gostaria de propor para pensar essa questão é a localização e o tipo dessa escola. É uma escola pública ou particular? Está na capital ou no interior? No centro ou na periferia? Como é o clima de convivência dentro dessa escola? Existe um senso de comunidade? Qual será o significado de proibir o celular dentro desse ambiente? O contexto de um ambiente escolar é fundamental para engajar os estudantes. A possibilidade de participar da decisão coletiva de proibir ou não o celular nesses espaços pode fazer muita diferença.

Uma coisa é pedir para não usar o celular durante a aula, outra é proibir o uso na escola inteira, inclusive durante os intervalos. Algumas escolas estão usando pochetes ou bolsas magnéticas semelhantes ao sistema de segurança das lojas. O aparelho fica fechado por uma trava magnética no começo das aulas e só no final das aulas o dispositivo é desbloqueado, por funcionários ou professores.

O problema dessa solução é considerar que todos os alunos usam o celular do mesmo jeito e que todos são incapazes de respeitar uma regra simples como evitar o uso em algumas situações.

Porque
Por fim, o ângulo mais profundo dessa questão é porque queremos proibir o celular no ambiente escolar? Estamos preocupados com a qualidade da experiência escolar desse jovem? Estamos cuidando de sua saúde mental? Queremos apenas obrigá-lo a prestar atenção às aulas? Essa medida é para evitar o cyberbullying e os plágios?

Quando usamos ângulos diversos para observar a questão, podemos notar que os próprios jovens estão sendo esquecidos na busca de uma solução para essa situação. Imagine o paradoxo na cabeça de um jovem que recebia um celular para se comportar e ficar quieto quando era mais novo, mas agora, depois que cresceu um pouco, é proibido de usar o celular.

A pergunta que devemos fazer é: de que tipo de educação estamos falando? O modelo clássico com aulas expositivas e conteudistas, em que os alunos ficam assistindo sem nenhum tipo de participação? Em que a memorização e não o processo de aprendizado é valorizado?

O pedagogo José Pacheco, um dos criadores da Escola da Ponte, defende que não é possível reinventar o modelo de educação sem reconhecer a importância de três valores fundamentais no processo de aprendizagem: autonomia, responsabilidade e solidariedade. Sem esse horizonte, os celulares sem dúvida são inimigos, pois funcionam como janelas mostrando aos alunos que existe vida lá fora.

Andre Stangl
É professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP. 

Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 09/03/2024 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2024.

Deixe um comentário