No mesmo dia em que foi inventada a verdade, foi inventada a mentira. São irmãs e talvez até gêmeas. O que poderia explicar a dificuldade que muitas vezes sentimos ao tentar identificar se estamos diante de uma verdade ou de uma mentira. Só mesmo conhecendo bem as duas para aprender a lidar com elas. Ainda mais nos dias de hoje. Com a velocidade das redes, na pressa, quem ainda não caiu numa fake news que atire a primeira pedra. Seja compartilhando uma revelação secretíssima que os grandes jornais não querem divulgar, seja aquela promoção inacreditável ou uma fofoca irresistível.
Lidar com as duas irmãs não é fácil para ninguém. Mas para o jornalismo profissional esse dilema é constante. Mesmo antes da internet, o jornalismo sempre teve que cuidar dessa distinção com apuro. E é justamente esse o termo. Quando um repórter vai checar suas fontes, o nome disso é apuração. Atualmente, o jornalismo enfrenta uma crise sem precedentes, impulsionada principalmente pela ascensão das redes digitais que deslocou seus leitores e a publicidade. Os algoritmos das redes nos fazem ter a impressão de estar bem informado, mas em geral eles selecionam apenas aquilo que gostamos de ver.
Faça uma experiência. Quando foi a última vez que você pegou um jornal e folheou? Nem é necessário ler tudo, basta passar o olho, de ponta a ponta, para ver uma quantidade impressionante de notícias que nunca apareceriam em sua timeline. Parece que essa forma de ler jornal, mesmo na sua versão digital que imita a diagramação do impresso, está se tornando cada vez mais rara. Nas versões digitais dos jornais é mais comum navegar pelas notícias de forma reduzida, via versão web ou via app. Ou apenas seguir o perfil dos jornais em alguma rede. Com isso o papel do jornalismo profissional foi mudando de relevância, ainda que algumas exceções sobrevivam.
Hoje, as notícias circulam primeiro nas plataformas digitais, através de perfis oficiais ou influenciadores. Essa forma de circulação pode intensificar uma sensação de incerteza, criando terreno fértil para a disseminação de fake news e desinformação. Nas redes sociais, as bolhas de informações se alimentam mutuamente, exacerbando a polarização. As implicações políticas e sociais desta nova realidade vão além do ambiente digital, influenciando profundamente a vida cotidiana. Esse cenário tem dificultado a nossa capacidade de convivência e tolerância. As formas mais agressivas de expressão parecem ser mais propícias a viralizar do que formas ponderadas e reflexivas. Mas qual a saída dessa barca furada?
Vamos pegar um exemplo recente, de uma situação que aconteceu no amado e também odiado BBB, a treta entre o baiano Davi e o paulista Nizam, que ocorreu após a formação do terceiro paredão do programa. Durante a discussão, Davi usou termos pejorativos, o que levou a intervenções de outros participantes, como Isabelle e Michel, este último alertando sobre o uso de uma linguagem homofóbica. (No caso, dizer “sou homem” como se fosse a própria definição da coragem e da retidão moral. Mulheres e gays seriam o quê?). Nizam se sentiu ofendido, mas depois Davi pediu desculpas, reconhecendo que seu julgamento pode ter sido precipitado e influenciado pela opinião de MC Bin Laden. Não cabe aqui julgar essas opiniões, mas o interessante é que, quando os envolvidos se juntaram para conversar, a treta foi resolvida.
O BBB é um laborátorio de tortura psicológica e sadismo, com doses de entretenimento e voyeurismo. Mas o convívio forçado dentro da casa, às vezes, pode nos oferecer a oportunidade de refletir sobre algumas características de nossa sociedade. Quando Davi conversou diretamente com Nizam, ele pôde ouvir o outro lado da história. Esse sempre foi um dos grandes méritos do jornalismo profissional, tentar ouvir todos os lados envolvidos em um fato. Assim é possível oferecer uma visão mais completa do que está sendo relatado, ainda que as interpretações dos leitores possam variar.
Infelizmente, em nosso mundo digitalizado, a crise de confiança e a falta de interesse no diálogo não podem ser resolvidas juntando todo mundo em um quarto. Para enfrentar esse desafio vamos precisar retomar alguns debates fundamentais na história da filosofia e das ciências. Pois, por mais importante que seja o trabalho das agências de fact checking, apurando e identificando as notícias e os boatos, a forma como lidamos com a institucionalização do conhecimento está mudando. A crise do jornalismo é um indicativo disso, mas a desconfiança ou o negacionismo científico também. A verdade científica é objeto de debate há muito tempo. Pode parecer surpreendente para alguns, mas nem objetividade e nem imparcialidade são conceitos indiscutíveis.
Vamos ter que ir além de simplesmente negar a natureza “construída” das notícias e dos fatos científicos. A visão romântica da descoberta científica como um tipo de revelação não sobrevive a um exame detalhado. Não é a origem construída ou inventada das ciências ou do jornalismo que tem abalado suas estruturas, mas sim a forma como avaliamos coletivamente essas construções.
Bruno Latour foi um dos principais autores a refletir sobre esses desafios. A sua obra é o testemunho da diversidade de possibilidades da presença da verdade no mundo. (Usando a metáfora do começo do texto, seria como dizer que a família é maior do que parece. Não são só duas irmãs, pois existem verdades e mentiras nas ciências, artes, leis, moral, religiões, etc. Ele chamava essas famílias de Modos de existência). Latour partiu em 2022, mas suas palavras permanecem abrindo corações e mentes para o poder do diálogo e da diplomacia.
O derradeiro livro de Latour, escrito durante a pandemia, “Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres”, nos faz pensar sobre nossa vida comum. Bastou um serzinho quase invisível, como o vírus da COVID, para mostrar a ilusão de nossas fronteiras. Para ele, o primeiro passo seria reconhecer que, apesar das diferenças, estamos no mesmo mundo. Como os brothers do BBB, também estamos confinados, não em uma casa, mas na superfície desse planeta. Só que agimos como se cada pessoa ou cada país tivesse seu próprio planeta para explorar e poluir. Reconhecer isso seria um passo importante para reconstruir as pontes que podem nos permitir conversar.
Para Latour, instituições como o jornalismo, a ciência, ou mesmo as religiões, criam as condições para o compartilhamento de sentidos. Não se trata de ignorar as diferenças de perspectiva, mas de reaprender a ouvir. Para efetivamente recuperar o espaço do diálogo, será necessário um esforço conjunto que envolva algum tipo de alfabetização midiática e uma reflexão profunda sobre o significado da convivência digital ou não, entre humanos e não-humanos também.
Além disso, é claro que as plataformas de mídia social precisam reconhecer o seu papel na facilitação da disseminação de desinformação. Mas lidar com esses desafios é uma tarefa que deve envolver toda a sociedade. Reconhecendo que as consequências de nossa desunião podem ser agravadas consideravelmente quando se trata de algo que pode levar a todos nós para o “paredão” da crise climática. Uma discussão que não depende apenas de nossas opiniões e que, lamentavelmente, não permite a simples desistência. Desse jogo, não vamos escapar sem conversar e encontrar uma solução coletiva.
Andre Stangl
É professor e educador digital, cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP.
Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 27/01/2024 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2024.
