A crise da originalidade ou uma nova era da criação?

A originalidade, com sua aura de singularidade e inovação, enfrenta agora o desafio de se redefinir em um contexto em que as Inteligências Artificiais (IAs) podem gerar obras que, aos olhos de muitos, competem em complexidade, beleza e, sim, autenticidade com as obras criadas exclusivamente por mentes humanas. Essa reflexão ganha uma camada adicional quando consideramos a dimensão espiritual e transcendental atribuída ao processo criativo. Em um mundo que parece privilegiar apenas a visão mais materialista ou bioquímica dos processos mentais, alimentar uma perspectiva tecnológica pode implicar na substituição dos humanos por máquinas até em áreas como a criação artística.

Como encarar essa situação sem ceder a discursos excessivamente distópicos ou demasiadamente ingênuos? Qual o futuro da expressão artística diante da co-criação com máquinas, e qual o impacto dessa parceria na nossa percepção de originalidade e autoria? Ainda que alguns acusem as criações feitas junto com IAs de serem meros plágios, alguns exemplos parecem ir em outra direção.

Rie Qudan é uma jovem escritora japonesa que ganhou o último Prêmio Akutagawa por seu romance “Tokyo Sympathy Tower”. Ela chocou o mundo ao afirmar que cerca de 5% do romance foi escrito por uma inteligência artificial (chatGPT). Sua obra desafia as fronteiras tradicionais da literatura, propondo uma simbiose entre humano e artificial que reflete a complexidade deste novo mundo. Rie afirmou que “mesmo que a IA seja superior, eu quero escrever por mim mesma […] A curiosidade sobre o que pode ser feito com as palavras é o que me faz usar a linguagem”. Ou seja, não se trata de abandonar a busca de autoexpressão, mas sim encontrar novas formas. Rie e seu ajudante artificial exemplificam a potencial riqueza dessa colaboração, ao mesmo tempo em que levantam questões éticas e filosóficas profundas sobre a essência da criatividade humana e o futuro da arte.

Na era atual, a questão da originalidade na arte e na criação intelectual confronta-se com desafios complexos, especialmente diante das novas descobertas em neurociência e o avanço das IAs. Robert Sapolsky, em seu livro “Determined: A Science of Life Without Free Will”, argumenta que nossas ações e decisões são fortemente influenciadas por fatores genéticos e ambientais, desafiando a noção tradicional de livre-arbítrio. Esta perspectiva sugere que a originalidade, tradicionalmente vista como fruto de uma liberdade criativa inerentemente humana, pode necessitar de uma reavaliação à luz do determinismo biológico e das capacidades das IAs.

Essas reflexões sugerem a necessidade de um novo entendimento da originalidade na criação artística e intelectual, considerando a interdependência entre criadores humanos, influências externas e a contribuição da tecnologia. A visão de Sapolsky propõe um olhar mais inclusivo e diversificado para a expressão criativa, reconhecendo a complexidade das redes de influências que moldam a arte e o pensamento.

Por outro lado, uma biografia interessante e relatos pessoais dos artistas muitas vezes agem como prismas através dos quais suas obras são vistas, interpretadas e valorizadas. Saber que uma determinada peça de música foi composta em um momento de profunda tristeza ou alegria na vida do compositor pode alterar a maneira como ouvimos e sentimos uma música. Da mesma forma, entender os desafios enfrentados por um pintor ou as inspirações por trás de suas pinturas pode transformar nossa experiência visual, tornando-a mais rica emocionalmente.

No entanto, essa relação também pode ser controversa. A revelação de comportamentos condenáveis ou episódios polêmicos na vida de um artista pode afetar negativamente a forma como sua obra é percebida, levando alguns membros do público a rejeitar completamente a arte em questão. Esse fenômeno reflete um dilema ético sobre se e como devemos separar a arte do artista. Um tema que ganha contornos ainda mais complexos na era das redes sociais e da cultura do cancelamento.

A importância atribuída aos artistas pode, por vezes, ofuscar a apreciação da própria arte, um reflexo da nossa fascinação por personalidades e da valorização da autoria como fonte de originalidade e genialidade. Esta tendência é um desenvolvimento relativamente moderno, crescendo particularmente a partir do Renascimento, quando a figura do artista individual começou a ser elevada a um status quase mítico, diferente dos processos de criação coletiva em culturas tradicionais.

As tecnologias de reprodução e difusão das obras artísticas, livros impressos, discos, etc. facilitaram a propagação de um modelo de difusão cultural que valoriza o artista individual. Esse modelo industrial não funciona muito bem com processos coletivos de criação. Um exemplo disso foi o álbum “Da Quixabeira pro berço do rio” (1992) que reunia as criações coletivas dos sambadores do Recôncavo Baiano. Vale assistir o documentário no Youtube sobre os desdobramentos da regravação que Carlinhos Brown fez de três músicas desse disco. A monetização centrada na ideia de autoria individual gerou uma confusão, pois as músicas eram fruto de um processo coletivo de criação.

No samba “Argumento”, Paulinho da Viola fazia uma apelo, entre a tradição e inovação: “Eu aceito o argumento / Mas não me altere o samba tanto assim”. As expressões da cultura tradicional podem absorver mudanças e inovações graduais, mas alterações radicais podem ameaçar e descaracterizar a força de algumas dessas manifestações. (Por exemplo, comer acarajé com ketchup é uma fronteira que prefiro não ultrapassar).

Na arte, como na culinária, a inovação tem seus limites, que são muitas vezes definidos pelo senso coletivo de aceitação. A originalidade, embora valorizada, não é um fim em si mesma. Ela deve dialogar com o contexto cultural, respeitando tradições enquanto explora novas possibilidades. O equilíbrio entre inovar e preservar é fundamental, sugerindo que a verdadeira inovação talvez resida na capacidade de reinterpretar e reinventar o tradicional de maneiras que façam sentido para o público contemporâneo.

Desde os anos 1990, a cultura do remix ganhou destaque como forma de expressão artística, principalmente na música. Mas a reutilização e reinterpretação de obras existentes para criar algo novo ainda desafia as noções convencionais de autoria, propondo uma visão de criatividade como um processo colaborativo, que não precisa estar centrada na noção clássica de autoria.

Paralelamente a isso surgiu o modelo de licenciamento Creative Commons (CC). O CC fornece uma estrutura legal que facilita esse tipo de expressão criativa, permitindo que artistas e criadores escolham os termos sob os quais suas obras podem ser compartilhadas e adaptadas. Ao oferecer diferentes tipos de licenças, o Creative Commons promove um equilíbrio entre os direitos dos autores e o acesso público ao conhecimento e à cultura, incentivando uma cultura de compartilhamento que enriquece o domínio público e estimula a inovação.

Esses desenvolvimentos apontam para uma redefinição da originalidade, na qual a inovação surge não somente da criação individual, mas também da interação dinâmica com o trabalho de outros. Este reconhecimento da criação como um ato fundamentalmente social e coletivo abre espaço para uma compreensão mais ampla das possibilidades individuais e colaborativas dos processos de criação, incluindo as parcerias entre humanos e não-humanos.

Em vez de ver a originalidade como uma fortaleza isolada do “gênio” individual, podemos começar a reconhecê-la como uma rede de interação, com fios que se estendem entre criações passadas, presentes e futuras.

Se a originalidade deixar de ser um valor em si, o sentido comunitário poderá voltar a ser valorizado no processo criativo. Todos podem colaborar de alguma forma. Sem a pressão e a pretensão de ser genial, os talentos podem ser distribuídos e a monetização também. Para isso precisamos reconhecer que toda obra de arte é fruto de um sentido construído coletivamente. Assim, o processo de criação envolvendo humanos e não humanos pode ser um retorno a uma forma de expressão menos centrada no sujeito. Se Sapolsky estiver certo, esse sujeito já está escrito nos códigos genéticos, resta a ele estoicamente seguir seu destino.

Escrevi esse texto junto com o chatGPT 4. Apenas revisei e confirmei algumas informações, fazendo alguns retoques e acréscimos quando julguei necessário.
Talvez meu ego de pretenso escritor não tenha sido plenamente contemplado, mas isso pode ser irrelevante se o sentido do texto ficou mais claro para os leitores.
A ironia é que talvez a originalidade desse texto seja justamente a sua falta de originalidade, mas, ainda assim, as perguntas que fiz seguem buscando respostas.

Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 23/03/2024 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2024.

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