Hoje, quando surge uma dúvida, qual é sua primeira reação? Perguntar a alguém? Consultar um livro ou uma enciclopédia? Ir a uma biblioteca? Meditar sobre a questão? Ou simplesmente dar um Google? Se for mais jovem, talvez procure a resposta no TikTok. Seja como for, a forma como buscamos conhecimento mudou radicalmente ao longo da história. Desde a sistematização do saber na Antiguidade, passando pelo ideal enciclopedista do Iluminismo, até os motores de busca e, mais recentemente, com a chegada dos agentes de inteligência artificial, cada era redefine nossa relação com o saber.
Em 26 de julho de 2024, a OpenAI lançou o SearchGPT, um motor de busca que combina funcionalidades tradicionais com a capacidade de geração de linguagem natural do GPT-4. Diferentemente dos buscadores convencionais que apresentam uma lista de links, o SearchGPT organiza e interpreta as informações, fornecendo resumos detalhados e descrições curtas diretamente na página de resultados.
Isso impactou diretamente os planos do Google, que até então enfrentava dificuldades para ganhar espaço no setor de IA. (Alguém ainda se lembra do Bard?) Para competir com o SearchGPT, o Google passou a incluir resumos nas respostas de busca, mas a eficácia desse recurso tem se mostrado inconsistente. Além disso, a empresa mantém seu modelo de negócios baseado na venda das posições iniciais dos resultados para anunciantes – os famosos links patrocinados – e na organização dos links por meio do PageRank, que prioriza páginas mais referenciadas como as melhores respostas para nossas buscas.
A nova aposta do Google é o AI Mode, uma funcionalidade experimental que integra inteligência artificial aos resultados de busca. O AI Mode do Google representa uma evolução significativa em relação aos resumos gerados por IA atualmente disponíveis na plataforma. Enquanto os resumos atuais oferecem uma visão geral concisa sobre um tópico, baseando-se em múltiplas fontes, o AI Mode vai além ao fornecer respostas mais detalhadas e contextualizadas, utilizando capacidades avançadas de raciocínio e funções multimodais. Disponível inicialmente para assinantes do Google One Premium via Google Labs, o AI Mode reflete a mudança nas preferências dos usuários, que buscam respostas mais rápidas. No entanto, levanta preocupações entre publishers, pois pode reduzir o tráfego para sites externos e impactar modelos de negócios baseados em publicidade e assinaturas. Além disso, erros em testes anteriores geram dúvidas sobre sua confiabilidade. Se bem-sucedido, pode redefinir a busca online, tornando-a mais automatizada e centrada na IA.
Recentemente a OpenAI lançou o “Deep Research”, uma ferramenta integrada ao plano plus do ChatGPT que conduz pesquisas autônomas e aprofundadas na internet, reunindo, analisando e sintetizando informações de múltiplas fontes para produzir relatórios detalhados. Esse modelo pode levar mais de 30 minutos explorando a web e entregar um documento praticamente pronto, incluindo referências, tabelas, correlações de dados e até mesmo insights que auxiliam na formulação de conclusões.
Novos avanços tecnológicos estão redefinindo nossa compreensão sobre a produção do conhecimento. Foi o caso da “co-scientist”, ferramenta de inteligência artificial (IA) desenvolvida pelo Google que solucionou em apenas dois dias um problema complexo relacionado às superbactérias, que microbiologistas levaram uma década para desvendar. O professor José R. Penadés e sua equipe do Imperial College London investigavam como algumas superbactérias desenvolvem imunidade a antibióticos. Ao utilizar a “co-scientist”, eles descobriram que ela gerou a mesma hipótese central de sua pesquisa em 48 horas, sugerindo que essas bactérias podem formar caudas a partir de diferentes vírus, permitindo sua propagação entre espécies. Penadés ficou surpreso com a precisão da IA, especialmente porque sua pesquisa ainda não havia sido publicada e, portanto, não constava no banco de dados da “co-scientist”.
Uma reportagem do New York Times destaca o ambicioso projeto da start-up Lila Sciences, sediada em Cambridge, Massachusetts. O objetivo é utilizar inteligência artificial para acelerar descobertas em áreas como desenvolvimento de medicamentos, agricultura, energia e novos materiais, realizando experimentos que tradicionalmente levariam anos em apenas meses. Com um investimento inicial de 200 milhões de dólares e uma equipe de cientistas, a empresa treina sua I.A. com vastos dados científicos e experimentais, permitindo a execução de testes automatizados que já resultaram na criação de anticorpos inéditos e catalisadores para a produção de hidrogênio verde, evidenciando a aposta do setor privado na transformação do método científico, apesar dos desafios ainda existentes.
Agora, vamos pensar um pouco sobre tudo isso… Sim, eu disse pensar. Pode parecer um pouco antiquado, mas talvez ainda seja necessário. Será que o conceito de descoberta científica está se tornando obsoleto? Ou seria apenas uma metamorfose de nosso desejo de dominação sobre a natureza disfarçado de progresso racional? Nietzsche interpretava o desejo de certeza e controle da ciência como um sintoma do medo humano diante do caos da existência. Para ele, a busca pela verdade absoluta e pelo domínio racional sobre o mundo reflete uma necessidade psicológica de segurança e ordem, herdada da tradição metafísica e moral cristã. Esse impulso, no entanto, é ilusório e limitador, pois a realidade não se submete a sistemas fixos e verdades imutáveis.
Thomas Kuhn, no clássico livro A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), argumentava que o progresso da ciência não ocorre de forma linear e acumulativa, mas sim por meio de mudanças de paradigmas. A ciência normal opera dentro de um conjunto de pressupostos aceitos por uma comunidade científica, até que anomalias acumuladas geram uma crise, levando a uma revolução científica e à adoção de um novo paradigma. Esse processo transforma não apenas teorias, mas a própria maneira como os cientistas enxergam e interpretam o mundo.
Diante da promessa de uma “superinteligência científica” impulsionada pela IA, podemos questionar se essa tecnologia está apenas acelerando a ciência normal ou se pode realmente provocar mudanças de paradigma. Como a IA aprende a partir de dados existentes, ela tende a reforçar os paradigmas vigentes, em vez de rompê-los.
No entanto, se um sistema de I.A. for capaz de gerar anomalias, formular novas teorias e desafiar conceitos fundamentais de maneira autônoma, poderíamos estar diante de um novo tipo de revolução científica. Mas isso exigiria mais do que apenas a descoberta de algo novo (lembre de Galileu). Uma mudança de paradigma não ocorre apenas com a apresentação de uma ideia inovadora; é necessário persuadir uma comunidade científica a aceitar e reinterpretar a realidade sob uma nova perspectiva.
A possibilidade de experimentos conduzidos de forma autônoma por inteligência artificial levanta questões sobre o estatuto epistemológico da ciência. Bruno Latour nos lembra que a produção do conhecimento nunca foi apenas um processo de descoberta objetiva, mas sempre envolveu instituições, grupos e dispositivos técnicos. Segundo Latour, a modernidade criou um “modo de existência” para a ciência que enfatiza sua autonomia e objetividade, mas ao mesmo tempo esconde sua dependência de redes institucionais, políticas e materiais. Se a IA se tornar o principal agente de descoberta, como garantir que os valores científicos — como rigor, transparência e verificabilidade — sejam preservados?
Caso as IAs estejam realmente transformando a prática científica, precisamos de novas formas de organização e validação do conhecimento que levem em conta essa transformação. A proposta da Lila Sciences pode ser vista como um exemplo disso, onde a IA busca automatizar o próprio método científico, potencialmente reduzindo a contingência, porém muitas descobertas são acidentais e isso também caracteriza a ciência humana. A pergunta central que emerge não é apenas “a IA pode revolucionar a ciência?”, mas sim “como reorganizamos nossas instituições para lidar com essa nova realidade?”
Diante desse cenário, a questão não é apenas se ainda queremos saber, mas como desejamos construir e compartilhar o conhecimento em uma era cada vez mais mediada pelas IAs? Como cantava Erasmo Carlos (música do mestre Gil): Queremos saber, queremos viver / Confiantes no futuro / Por isso, se faz necessário / Prever qual o itinerário da ilusão / Da ilusão do poder / Pois se foi permitido ao homem /Tantas coisas conhecer / É melhor que todos saibam / O que pode acontecer.
(Esse texto foi coescrito com uma IA)
Andre Stangl, 2025.
Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 15/03/2025 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E
