Carta ao leitor do futuro

Caro futuro leitor,

Começo essa carta com uma pergunta inusitada. Você ainda existe? Pode parecer meio esquisito perguntar isso. E mais estranho ainda se você já não existir. Para que escrever essa carta se você não lembra mais como fazer para ler?

Estou escrevendo essa carta em 2024 e por isso vou falar um pouco sobre como as coisas estão aqui no passado. Vou citar algumas coisas que me fizeram imaginar como será sua vida aí no futuro.

Primeiro, não sei se você lembra de um aplicativo chamado WhatsApp. Por sinal, agora fiquei na dúvida. Será que vocês ainda usam celular? Quem sabe no seu tempo a comunicação já tenha evoluído para algo ainda mais instantâneo e abreviado. Talvez apenas um pensamento enviado direto para a mente de outra pessoa? Bem, o zap, como o chamamos, surgiu para facilitar a vida e ou infernizar, depende do caso. Com ele, a gente trocava mensagens escritas. Com o tempo, o pessoal começou a usar abreviações, imitando a fala: 

Vc vai hj?
Blz, pq eu tb vô, mas sqn ñ… 
Mds, já é fds tô c sdds de vcs. 
Pdc, tmj, flw? 
Vlw, bj!

(Se não conseguiu decifrar, pergunte a alguém mais novo).

Além, é claro, de usar os emojis e avatares com expressões diversas. E por fim as mensagens de áudio. Pequenas pílulas de monólogos que o pessoal aqui de 2024 considerava uma forma mais prática de conversar do que simplesmente ligar. Na época, Mark Zuckerberg, da Meta, chegou a dizer que os brasileiros enviaram quatro vezes mais áudios do que qualquer outra nação. Nem quero imaginar como o Mark deve estar aí no futuro… Será que ele conseguiu virar avatar?

O hábito de preferir usar áudios gravados ao invés de escrever ou conversar, na época, parecia uma coisa ingênua. E foi ficando cada vez mais claro que escrever estava deixando de ser interessante. 

Outra pista de como o mundo estava caminhando foi a quantidade de pessoas ouvindo podcasts e audiolivros. Tantas opções interessantes, basta ouvir e ao mesmo tempo lavar louça, caminhar ou fazer compras no supermercado. E foi ficando cada vez mais claro que ler estava deixando de ser interessante. 

Pois é, nessa época eu escrevia colunas, em um jornal na Bahia. Você não deve lembrar o que é um jornal. Até aqui, na minha época, é difícil encontrar alguém que lê jornal todo dia. Basta ver a chamada nas redes e, pronto, estamos todos informados. Se o texto for comprido, então, a coisa fica ainda mais complicada. Quem tem tempo? 

Foi com essas minhocas na cabeça que eu comecei a ler (sim, eu ainda lia) o livro da Maryanne Wolf intitulado “O cérebro no mundo digital: Os desafios da leitura na nossa era”. E que livro incrível! Wolf é (era?) uma leitora apaixonada e intrigada com a questão da dislexia. Começou a estudar os processos neurais envolvidos na leitura e as implicações para indivíduos com essa condição. Em seu livro anterior, “Proust and the Squid: The Story and Science of the Reading Brain” (2007), ela investiga a história e a ciência por trás do cérebro leitor, examinando como a leitura evoluiu e seu impacto no desenvolvimento humano. Segundo ela, foi só quando terminou esse livro que ela viu que iria precisar fazer outro livro, pois a digitalização estava mudando tudo.

No novo (aqui em 2024) livro, Wolf escreve cartas, e foi essa minha inspiração para escrever essa carta para você. Nessas cartas, ela vai desenhando um cenário impressionante das transformações do nosso cérebro. Segundo ela, “os seres humanos não nasceram para ler. A aquisição do letramento é uma das façanhas epigenéticas mais importantes do Homo sapiens”. O ato de ler criou um novo circuito de conexões em nosso cérebro. Algo que só aconteceu na nossa espécie, por isso é importante preservar a leitura profunda em meio ao avanço tecnológico. A adaptação ao mundo digital não deve comprometer habilidades cognitivas essenciais desenvolvidas através de séculos de leitura tradicional. Ou pelo menos não deveria…

O livro de Wolf é (era) um apelo. Se fosse (for) ouvido talvez você, leitor do futuro, ainda exista.

Mas não é só a leitura que está (estava) mudando, a forma como escrevemos também está (?) se transformando. Agora vamos fazer de conta que você está aqui em 2024, essa dobradinha de tempo verbal está ficando meio confusa…. A era em que a coescrita com ajuda da inteligência artificial se tornou uma realidade. E da mesma forma que precisamos combinar as novas possibilidades da leitura com a habilidades tradicionais de atenção e contemplação, a nova era de escrita também precisa ser uma combinação equilibrada. 

Já faz mais ou menos um ano que eu tenho experimentado coescrever com IA essas colunas. E nos últimos dias tenho tido a oportunidade de conversar com outras pessoas sobre essa experiência, em alguns eventos, oficinas, cursos, etc. Não tem muito mistério, só é possível fazer algo interessante na coescrita se você também for um leitor. Só assim você vai conseguir avaliar a cocriação, editar, revisar e, às vezes, até errar.  Sim, se não houver o risco do erro, não haverá o prazer de fazer. 

O filósofo – meio brasileiro, meio tcheco – Vilém Flusser já falava sobre isso no final dos anos 80. Flusser observou que a escrita linear, típica da era da imprensa, estava sendo substituída por códigos mais complexos e não lineares. Em seu livro “A Escrita: Há futuro para a escrita?”, ele profetizava que: 

“O que se tem em mente aqui não são máquinas de escrever, no sentido tradicional dessa palavra, uma vez que, nesse caso, é ainda um ser humano que organiza em linhas, com um toque nas teclas, de acordo com as regras da escrita, os sinais gráficos distribuídos no teclado. Aqui, temos em mente verdadeiras máquinas de escrever (inteligência artificial), que providenciam elas próprias essa organização. Tais máquinas não são, para dizer a verdade, apenas de escrever, mas também máquinas pensantes, o que deveria nos levar a refletir sobre o futuro da escrita e, de maneira geral, a respeito do pensar.”

Você, leitor do futuro, já deve estar convivendo com máquinas mais inteligentes que nós. Pelo menos assim previu o ganhador do Nobel, Geoffrey Hinton. Espero que a distopia que ele visualizou não tenha se realizado. E, pelo contrário, uma esperança de reinvenção tenha florescido. Como quis imaginar Flusser.

Para ele, a revolução tecnológica exige que nos adaptemos e, em muitos casos, que reaprendamos. Flusser destacou a importância de estarmos abertos a esse processo: “Nós teremos de reaprender muitas coisas. É complicado, porque reaprender pode ser difícil para o aprendiz e, sobretudo, porque é difícil esquecer o que se aprendeu em algum momento. Uma vantagem da inteligência artificial é que ela pode esquecer sem qualquer problema. Nós aprendemos com ela a importância do esquecer. E essa é uma enorme reaprendizagem, pois nos exige repensar a função da memória.”

Ele sugere que precisamos retornar ao “jardim de infância” para nos familiarizarmos com essas novas ferramentas: “Teremos de retornar àquele nível em que ainda não tínhamos aprendido a ler e a escrever”. Neste jardim de infância, vamos precisar aprender a aprender brincando com nossos “gadgets” e IAs. Flusser reconhece que essa inversão na hierarquia das gerações — onde as crianças superam os adultos no manejo das novas tecnologias — pode ser desconfortável. Mas ele nos encoraja a abraçar essa mudança, a fim de não ficarmos para trás em um mundo cada vez mais digital.  Para ele:

“Quão vertiginosa a coisa é, ficará óbvio quando nos colocarmos no lugar do leitor do futuro. Vamos supor que toda a literatura mundial já está transcodificada digitalmente, armazenada em memórias artificiais, e que sua forma alfabética original tenha sido apagada. O leitor do futuro senta-se diante da tela para acionar as informações armazenadas. Não se trata mais de uma leitura passiva (de uma escolha) de fragmentos de informação ao longo de uma linha pré-escrita. Trata-se muito mais de uma associação ativa de ligações transversais entre os elementos de informação disponíveis. É o próprio leitor que produz, então, a informação de acordo com seu objetivo, a partir dos elementos de informação armazenados. Nessa produção de informação, o leitor dispõe de diversos métodos de associação que lhe são sugeridos pela inteligência artificial, mas ele pode também utilizar seus próprios critérios. E, com certeza, pode-se esperar para o futuro uma ciência específica que se ocupará com os critérios de acionamento e associação de bits de informação.”

Se a previsão visionária de Flusser estiver certa, você, leitor do futuro (ou do presente?), vai combinar várias formas de leitura e escrita. Como uma criança que reorganiza o tabuleiro de um jogo de xadrez reinventando as regras antes do tabuleiro desaparecer, para não deixar de brincar.

Então, leitor do futuro, talvez agora você esteja reescrevendo esta própria carta de forma que eu nunca poderia imaginar. Quem sabe, a minha voz já não é mais a mesma e você criou sua própria versão da história. Talvez já não haja mais autores como eu, apenas narrativas infinitas se desdobrando, uma na outra, como um jogo de palavras que nunca acaba. Uma coisa é certa: já não escrevemos e lemos como antigamente. Mas talvez, afinal, isso seja o que sempre buscamos: a reinvenção do mundo.

abcs e até breve

(Esse texto contou com a assistência de uma IA)

Andre Stangl, 2024.
Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 02/11/2024 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E

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