A parrhesia e a liberdade de expressão digital

A internet nasceu com a promessa de ser um lugar para o pleno exercício da liberdade. Um mundo sem fronteiras, regras e limites. Os pioneiros dessa utopia acreditavam que a razão prevaleceria e o melhor dos mundos se desenvolveria naturalmente. Não fossem os discursos de ódio, o desrespeito aos direitos humanos, as calúnias, os golpes, o racismo e o preconceito, as trollagens, fake news, etc. Hoje, a internet está mais próxima de ser o paraíso da desinformação e da lacração do que o da realização do sonho de uma Ágora digital.

Na Grécia Antiga, a Ágora era o centro do debate democrático, uma praça onde todos os cidadãos podiam expressar seus pontos de vista. Infelizmente, naquela época, mulheres, escravos e estrangeiros eram excluídos dessas discussões. Apesar dessas limitações, o modelo grego ainda inspira as bases da democracia moderna. Com o crescimento das cidades, as praças físicas deram lugar a um sistema representativo, no qual delegamos a representantes a tarefa de defender nossas posições e preferências nas discussões sobre leis e políticas públicas.

Nos últimos anos, com o advento da internet, surgiu a esperança de uma nova forma de democracia direta. A Ágora digital, sem as barreiras físicas e temporais das praças reais, permitiria a participação de todos nas decisões por meio da rede. Muitos projetos de governo eletrônico começaram a incorporar a participação cidadã. No entanto, nas redes digitais, a qualidade dos debates se deteriorou, demonstrando que estas plataformas talvez não sejam o ambiente mais propício para o florescimento de uma democracia fundamentada na argumentação.

No tempo da Ágora grega, a coragem de falar abertamente ou francamente era conhecida pelo termo parrhesia. Especialmente em contextos em que havia risco para quem falasse o que realmente estava pensando. A parrhesia envolvia não apenas a liberdade de falar, mas também a coragem e o dever moral de falar a verdade para o bem comum, doa a quem doer, mesmo que isso implicasse na perda de popularidade, em “cancelamentos” ou até riscos de vida. Historicamente, a parrhesia era vista como um componente essencial da democracia em Atenas, permitindo aos cidadãos desafiar líderes e opiniões populares, contribuindo assim para um debate público mais robusto e honesto.

Michel Foucault interpretava a parrhesia como uma postura essencial e um meio de resistência ao poder, pois o indivíduo, ao falar francamente, se engaja, se reconhece e desafia a estruturas de poder. Foucault desenvolve sua interpretação da parrhêsia em uma série de conferências, disponiveis no site (https://foucault.info/parrhesia/). Ele não estava preocupado em determinar se o que está sendo dito é verdade ou não. Para ele é importante destacar o ato de falar, mesmo que seja arriscado, como uma característica da democracia.

Durante a Idade Média, a prática da parrhesia ficou bem mais complicada. Na época, a Igreja Católica controlava o que podia ser dito. Qualquer crítica à sua autoridade ou doutrina era frequentemente vista como heresia, podendo resultar em severas punições, incluindo a excomunhão e execução. Na Idade Média, a parrhesia frequentemente conflitava com as normas e controles impostos pela Igreja Católica, limitando significativamente a liberdade de expressão. Até o surgimento da imprensa de Gutemberg foi visto com desconfiança, pois era um risco, já que qualquer um poderia publicar um jornal ou livro em larga escala, sobre o que quisesse.

O questionamento do controle da Igreja começou a se intensificar durante o Renascimento, com a redescoberta dos textos clássicos e o crescimento da reflexão científica e filosófica. No entanto, foi só durante o Iluminismo que a defesa da liberdade de expressão ganhou força. Filósofos iluministas como John Locke, Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant argumentaram a favor da liberdade de pensamento, expressão e imprensa como fundamentos essenciais para o progresso humano e a justiça social. Seria dessa época a famosa frase “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”, atribuída a Voltaire. Na verdade, é uma formulação posterior da escritora Evelyn Beatrice Hall, que escreveu uma biografia de Voltaire em 1906. Seja como for, a frase sintetiza o pensamento dos iluministas sobre a liberdade de expressão.

Desde que adquiriu o antigo Twitter, agora chamado X, o controverso empresário Elon Musk tem se posicionado como um ardente defensor da liberdade de expressão. Ele tem questionado decisões judiciais, como a da justiça brasileira, que exigiram a remoção de perfis acusados de disseminar discursos de ódio e desinformação. Musk argumenta que tais ações são contrárias aos princípios da liberdade de expressão.

Segundo Ronaldo Lemos, que é advogado, especialista em direito digital, e um dos formuladores do Marco Civil da Internet: “Nossas instituições deveriam ter ignorado solenemente as ameaças de Musk no X. Se ele cruzasse a linha e de fato descumprisse ordens judiciais (o que não ocorreu), as consequências deveriam ser legais, dadas nos autos do processo. Ao respondermos a tuítes com ameaças hipotéticas, por meio de centenas de artigos na imprensa, declarações de autoridades, bravatas e movimentações processuais espetaculares, o Brasil transferiu o debate do STF (Supremo Tribunal Federal) para o tribunal da internet. E nesse tribunal Musk é rei”. (Folha de S. Paulo, “Elon Musk deu um baile no Brasil e venceu”, 10 abr. 2024).

O Marco Civil da Internet no Brasil, formalizado pela Lei nº 12.965/2014, aborda a liberdade de expressão, estabelecendo diretrizes claras para o uso da internet, incluindo a proteção deste direito fundamental. Segundo a legislação, os provedores e plataformas da internet só têm a obrigação de remover conteúdo gerado por terceiros após uma ordem judicial específica para tal ação. Isso está diretamente relacionado ao artigo 19 do Marco Civil, que visa prevenir a censura e garantir a liberdade de expressão, enquanto também protege a privacidade e outros direitos dos usuários​. Ou seja, já existe uma regulamentação sobre o que pode ser falado e quais as consequências se algo ilegal for publicado.

Também recentemente ganharam manchetes a tentativa do governo americano de impor restrições à plataforma TikTok, alegando até questões de segurança nacional (tema para outra coluna…). Mas, afinal de contas, por que redes como X e TikTok assustam tanto? Por que elas parecem ao mesmo tempo ajudar e ameaçar a liberdade de expressão? Um caminho para tentar entender essa sinuca de bico é voltar aos clássicos manuais das teorias da comunicação.

No começo dos estudos de comunicação, nas primeiras décadas do século XX, uma teoria ficou muito influente e era conhecida como a Teoria da Agulha Hipodérmica. Segundo essa teoria, as mensagens midiáticas teriam um efeito direto, imediato e poderoso sobre o público, comparável a uma injeção na corrente sanguínea da população. Segundo essa teoria, o público é passivo e uniformemente afetado pelas mídias, sem capacidade de resistir ou interpretar as mensagens de forma crítica.

Nesse sentido, se entendemos as redes digitais como um tipo de mídia, a disseminação de desinformação poderia afetar diretamente o público. Por isso seria importante restringir ou regular o que pode ser disseminado nessas mídias. No entanto, ao longo do tempo, a Teoria da Agulha Hipodérmica foi bastante criticada por sua simplicidade e pela falta de embasamento empírico. Argumenta-se que ela falha ao não considerar as experiências, crenças e valores individuais que influenciam como as mensagens são recebidas e interpretadas pelo público.

Vamos pegar um exemplo: será que assistir a novelas ou filmes com personagens LGBT pode influenciar a orientação sexual de uma criança? Se a Teoria da Agulha estiver certa, bastaria assistir algumas dessas produções para induzir uma criança. Isso obviamente é uma simplificação de uma questão muito mais complexa. Segundo a visão mais aceita atualmente na Psicologia e nas Ciências Sociais, a orientação sexual é resultado de uma combinação de fatores genéticos, hormonais e sociais. Ou seja, segundo os cientistas, não é algo que pode ser escolhido ou ensinado diretamente por meio de exposição a conteúdos de mídia. Afinal, ninguém se torna hétero porque assistiu filmes de Rambo e John Wayne.

Precisamos ter mais cuidado quando superestimamos o poder de manipulação das mídias, pois as escolhas identitárias e políticas, a forma como as pessoas interpretam o mundo e suas crenças e valores são resultado de composições complexas que não podem ser reduzidas a um único fator. As mídias podem afetar essas escolhas, mas não são o único fator determinante. É evidente que as redes digitais precisam ser reguladas, o que é diferente de censurar, como já está previsto no Marco Civil da Internet. Nesse sentido, também são bem-vindas iniciativas de autorregulação como o Conselho de Supervisão Independente da Meta (Oversight Board), uma espécie de ouvidoria independente que supervisiona os limites da liberdade de expressão no Facebook, Instagram e Threads.

Platão desconfiava da democracia grega e da eficiência dos debates na Ágora, pois para ele, antes de debater livremente, as pessoas precisam ser instruídas. O seu sonho era um governo aristocrático formado por reis filósofos, um sonho ingênuo e fruto das limitações da experiência democrática de sua época. É inegável que precisamos melhorar a qualidade dos debates, ou melhor, do bate boca nas redes. A regulação é uma parte importante do processo, mas de nada adiantará se não nos educarmos para esse debate.

Precisamos de ambientes mais saudáveis e construtivos para o exercício da parrhesia. Como acontece, por exemplo, na Kialo, uma plataforma desenhada para debates mais bem estruturados, em que os argumentos a favor e contra uma ideia são mapeados de forma clara e lógica. Diferente das plataformas mais famosas, em que a performance e a lacração contam mais que o argumento, na Kialo precisamos exercitar a fundamentação. Não custa experimentar. Eexercer a parrhesia com responsabilidade pode ser um novo começo para o sonho de uma ágora digital, que de fato nos ajude a conviver.

(Esse texto contou com a assistência de uma IA)

Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 04/05/2024 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2024.

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