Cuidado com a saúde digital

As novas tecnologias digitais estão transformando a forma como cuidamos da saúde. Ainda não deu tempo de contabilizar os impactos dessa transformação, pois ela afeta áreas diversas, como o atendimento médico, a precisão dos exames de imagem, a produção de medicamentos e a pesquisa sobre epidemias. Para tentar entender essas mudanças, vamos começar com um exemplo simples.

Talvez não exista situação mais angustiante que o desespero de uma mãe ou pai quando seu filho acorda no meio da noite sentindo algum tipo de dor ou desconforto. Para facilitar, vamos chamá-lo de Neo. Depois de acalmar Neo, e antes de pensar em ir atrás de algum médico ou emergência, os pais, muito provavelmente, vão buscar mais informações sobre os sintomas no famoso Doutor Google. Em geral, essa opção pode ajudar, pois, se os sintomas forem comuns, os pais nem vão precisar sair de casa e podem resolver a situação com tranquilidade.

Porém, se for algo mais grave, será necessário buscar ajuda de um profissional. Se a família tiver carro e morar em uma região central, vai poder fazer isso facilmente. Pode até pedir a ajuda do Waze ou do Google Maps e com isso localizar a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) mais próxima. Na UPA, Neo passará por exames laboratoriais realizados por máquinas digitais de grande escala. No atendimento ou na internação, os dados clínicos serão registrados no prontuário eletrônico e armazenados em plataformas de megadados, na nuvem. Se precisar de exames sofisticados de imagem, como tomografia computadorizada ou ecografia, serão usados equipamentos digitais, alguns já contando com alguma forma de IA. Se for necessária uma pequena cirurgia, provavelmente, Neo será operado com algum aparelho de cirurgia robótica, com programação digital. No seu tratamento, usará algum medicamento que foi desenvolvido por programas de simulação de estrutura química e avaliado mediante ensaios clínicos analisados por algoritmos estatísticos, muitos deles com IA.

Mas, se a família morar na zona rural ou longe do centro urbano, esse atendimento não vai ser tão simples. Para ajudar em situações como essa, uma alternativa está começando a se popularizar pelo mundo, a telemedicina. A teleconsulta de emergência é uma solução promissora, que pode evitar o deslocamento desnecessário da criança e reduzir os custos da atenção primária em saúde. Esses serviços permitem que os pais recebam orientação profissional rapidamente, sem a necessidade de levar a criança a um pronto-socorro, a menos que seja realmente necessário. A telemedicina tem o potencial de revolucionar o atendimento médico, proporcionando acesso rápido e conveniente a cuidados médicos, mesmo em horários e locais menos acessíveis. Além de aliviar a pressão sobre os serviços de emergência, a teleconsulta pode fornecer um diagnóstico preliminar e orientar os próximos passos, seja uma visita ao hospital ou cuidados em casa.

Durante a pandemia de COVID-19, a telemedicina mostrou seu potencial transformador ao garantir o acesso contínuo e seguro aos cuidados de saúde. Eliminando barreiras geográficas e reduzindo a necessidade de deslocamentos, a telemedicina permitiu consultas remotas, monitoramento de doenças crônicas e acompanhamento pós-operatório, mantendo a eficiência e diminuindo custos. A adoção acelerada de tecnologias digitais integrou funcionalidades avançadas, como prontuários eletrônicos e monitoramento remoto.

Esse cenário ainda parece distante da realidade de muitos brasileiros, pois a maioria desses recursos está na rede privada. Mas a boa notícia é que o Ministério da Saúde, por meio da Portaria GM/MS nº 3.232, de 1º de março de 2024, instituiu o Programa SUS Digital, com o objetivo de impulsionar a transformação digital no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). O programa abrange serviços como telessaúde, teleassistência, telediagnóstico, teleducação, inovação, monitoramento e avaliação de dados, sistemas de informação e desenvolvimento de aplicativos. Ele também oferece incentivos financeiros para apoiar esses planos. Veja mais detalhes no site (https://portalfns.saude.gov.br/instituicao-do-sus-digital/).

A saúde é um conceito complexo e multifacetado. Cada época e cultura possui suas próprias formas de tentar defini-lo. Por ser um conceito tão variável e subjetivo, muitas vezes torna-se mais fácil reconhecer sua ausência, ou seja, quando estamos doentes. Na prática, percebemos o valor da saúde justamente quando a perdemos. O professor e pesquisador baiano Naomar de Almeida Filho tem se dedicado a entender o conceito de saúde. Ele critica os modelos biomédicos e psicossociais tradicionais por sua incapacidade de lidar completamente com os determinantes sociais da saúde. Naomar defende uma abordagem que incorpore tanto os aspectos biológicos quanto os sociais, argumentando que a saúde deve ser entendida não apenas como a ausência de doença, mas como um fenômeno complexo que inclui fatores culturais, econômicos e políticos.

Steven Johnson é um autor prolífico que escreve sobre diversos aspectos da tecnologia, cultura e inovação. Em seu último livro, “Longevidade: Uma breve história de como e por que vivemos mais”, ele apresenta um mapa fascinante dos desenvolvimentos que estão transformando nossa expectativa de vida. Ainda que Johnson, em geral, use exemplos do contexto norte-americano, ele consegue explorar como avanços em vacinas, saneamento básico, antibióticos e tecnologias digitais, entre outros, têm contribuído para o aumento da expectativa de vida humana ao longo dos últimos séculos.

No livro, ele mostra como inovações simples podem salvar muitas vidas, mesmo em contextos diferentes. Segundo ele, entre as inovações que salvaram milhões de vidas estão o coquetel para a AIDS, anestesia, angioplastia, medicamentos contra a malária, reanimação cardiopulmonar (RCP), insulina, hemodiálise, terapia de reidratação oral, marca-passos, radiologia, refrigeração e cintos de segurança. Em seguida, vêm as inovações que salvaram centenas de milhões de vidas, como os antibióticos, agulhas bifurcadas, transfusões de sangue, cloração (da água) e pasteurização (do leite). E, por fim, as inovações que salvaram bilhões de vidas, que são o fertilizante artificial (para reduzir a fome), as vacinas e os vasos sanitários (isso mesmo, o saneamento e o esgoto salvam vidas).

Johnson também destaca a importância do desenvolvimento da epidemiologia como uma nova forma de organizar e relacionar dados que podem impactar a saúde coletiva das populações. Segundo ele, os pioneiros dessa nova forma de conhecimento foram William Farr, John Snow e William Du Bois. Farr estabeleceu a importância da coleta e análise sistemática de dados de saúde. Snow introduziu métodos de mapeamento para identificar fontes de infecção. E Du Bois destacou as desigualdades sociais e raciais na saúde pública. Juntos, esses pioneiros forneceram uma base sólida para o desenvolvimento contínuo da saúde pública e da epidemiologia, mostrando que uma abordagem multidisciplinar é essencial para melhorar a saúde e aumentar a longevidade global.

Um exemplo recente citado por Johnson foram as redes de dados abertos sobre COVID-19, que mostram como a tecnologia e a transparência podem transformar a saúde pública. Ao permitir a coleta, análise e compartilhamento rápidos de dados críticos, essas redes ajudaram a salvar vidas e a coordenar uma resposta global eficaz à pandemia. Johnson destaca essa inovação como um marco na história da saúde pública, ilustrando a importância das ferramentas digitais e da colaboração internacional na luta contra doenças emergentes.

No livro, um exemplo curioso foi o uso de termômetros conectados à internet, desenvolvido pela Kinsa, que permitiu a coleta de dados de temperatura corporal em tempo real durante a pandemia de COVID-19, ajudando a identificar rapidamente os focos de infecção. Nas regiões onde esse termômetro foi usado, a rápida disseminação de dados sobre infecções, hospitalizações e mortalidade foi fundamental para o controle da pandemia, permitindo a implementação de medidas eficazes como o distanciamento social e a vacinação.

Será que um dia a família de Neo, mencionada no início da coluna, terá acesso a um desses termômetros conectados à internet? Imagine que, ao primeiro sinal de alteração na temperatura, um alerta seja enviado para um sistema de monitoramento por IA. Esse sistema poderia identificar tendências na região e rapidamente enviar informações que ajudassem a evitar o susto dos pais durante a madrugada, permitindo a adoção de medidas preventivas.

No livro, Johnson destaca como as IAs podem melhorar a precisão e a rapidez dos diagnósticos, acelerar a descoberta de novos medicamentos, prevenir surtos de doenças e personalizar tratamentos médicos, tornando-os mais eficazes. No entanto, Johnson também alerta para os desafios éticos e de privacidade associados ao uso de grandes volumes de dados médicos, enfatizando a necessidade de regulamentações rigorosas para garantir que essas inovações sejam implementadas de maneira responsável e segura.

A questão da privacidade dos dados médicos é extremamente importante. Você realmente acha que as farmácias oferecem descontos após cadastrar seu CPF apenas por gentileza? Na verdade, elas coletam e utilizam esses dados para entender melhor seus clientes e direcionar estratégias de marketing. Além disso, algumas farmácias podem compartilhar esses dados com planos de saúde, o que levanta preocupações adicionais sobre a segurança e o uso ético das informações pessoais.

Por isso, como nos lembra o professor Naomar, não podemos falar de saúde coletiva sem considerar a justiça social. A exploração comercial de medicamentos e tratamentos tem sido elitista, promovendo desigualdades e exclusão. Por isso, não é um caminho viável para a construção da equidade e do equilíbrio na vida social. As novas formas de cuidado possibilitadas pelas tecnologias digitais representam um avanço significativo, mas também trazem o desafio de integrar essas inovações com práticas democráticas de acesso. É imperativo que descubramos maneiras de equilibrar essas novas possibilidades com a democratização do acesso e o uso responsável. As políticas públicas devem assegurar que todos os indivíduos, independentemente de sua posição socioeconômica, tenham acesso equitativo aos cuidados de saúde. Somente assim poderemos construir uma sociedade mais justa e solidária, em que a saúde não seja um privilégio de poucos, mas um direito de todos.

(Esse texto contou com a assistência de uma IA. Também agradeço ao prof. Naomar de Almeida Filho pelas sugestões.)

Coluna do Museu de Novidades
Pubilcada no dia 01/06/2024 no Jornal Correio (link) e (pdf).
Ilustração: Prompt design com DALL-E por Andre Stangl, 2024.

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